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O Canibalismo em Tempos de Tinder

(THROWBACK THURSDAYS: Toda quinta, uma resenha sobre um produto marcante da cultura pop de tempos atrás)

 

Sob a Pele (2013) foi um filme muito subestimado. Sim, subestimado. Porque a maioria de seus expectadores (eu incluso) achou à primeira vista que se tratava sobre “O FILME QUE A SCARLETT JOHANSSON APARECE COMPLETAMENTE NUA”. Assim mesmo, em letras garrafais e gritantes. Um filme aparentemente pequeno, independente, quase experimental, que por conta da suposta exposição da atriz tomou uma proporção sem tamanho na mídia, pirataria na internet antes de seu lançamento, assunto de roda de bar, e entrou e saiu de circuito com seu público quase ignorando o tema principal. Aliás, se você já viu o filme, você sabe qual era? Ironicamente, era sobre isso mesmo.

Scarlett Johansson é hoje a segunda atriz mais bem paga de Hollywood. A versatilidade da atriz em fazer super-heroínas, vilãs, coadjuvantes, drama, comédia e afins fizeram dela um dos nomes mais desejados entre os diretores, produtores e roteiristas. Aliás, se tem uma coisa que é comum quando se fala de ScarJo, é o desejo – é também um dos maiores sex symbol dessa geração. Sabendo disso, vez ou outra a atriz faz um trabalho diferente, daqueles que a distanciem da imagem de só um rostinho bonito e corpo exuberante, como no belíssimo Ela, de Spike Jonze, também de 2013. No caso de Under the Skin (no original) é diferente: ela faz seu trabalho mais erótico até hoje e põe o corpo todo a jogo para mostrar da mesma forma que sua atuação sempre vai definir ela mais do que sua sensualidade.

Sobre o filme: Uma alienígena chega ao planeta Terra e se disfarça de uma mulher jovem e atraente, que seduz homens para sua van afim de fazer novas presas. O filme não deixa exatamente claro se as vítimas em questão são “comidas” ou quando e onde isso começa, como chegam lá, mas essa é a grande sacada. Tudo o que se vê é um grande plano escuro e vazio e o reflexo da água no chão (numa cena que muito provavelmente inspirou a mente de Onze em Stranger Things); onde estão apenas a alien e o ser humano, predadora e presa, e o segundo vai afundando lentamente até que seja consumido. É exatamente isso que o diretor, Jonathan Glazer, quis com essa indefinição. Comer é consumir, consumir é comer, e o desejo sexual do capturado pela linda motorista solteira é tão grande quanto a da alien de absorvê-lo.

Sob a Pele é um filme sobre canibalismo, isso é claro. Mas antes de explicar mais sobre, é melhor dar um exemplo para contextualizar. Você já usou o Tinder?

Sim, o Tinder, aquele aplicativo onde as pessoas avaliam o perfil de outras da sua preferência sexual, um a um, e apertam um botão para curtir e outro para descurtir. Se a pessoa do perfil curtido também curtiu o usuário de volta, é possível começar uma conversa entre os dois. Quem usa o aplicativo com frequência sabe que muitas vezes as curtidas se acumulam, os perfis não começam a interagir e o que antes propunha qualidade vira quantidade. O aplicativo de relacionamentos vira um canal de avaliação de perfis. E de certa forma, de avaliação própria.

Voltando ao canibalismo: relacionado a isso por um de seus discípulos, Freud explica a primeira fase da formação psicossexual do indivíduo como oral, pois é quando o ser humano, associado à mãe, começa a construir sua identidade e libido, pois é saciado com carinho contato e comida pelo peito materno. Karl Abraham é quem denomina essa fase “canibalesca”. Já Melanie Klein vai mais a fundo e usa a expressão “sádico-oral” para tratar de um amor e ódio do bebê à mãe, pois o peito é quem o sacia, e ao mesmo tempo o que o limita de possuir mais leite, quando a mãe guarda o seio, por exemplo. Todos entretanto concordam que há no bebê o impulso de possuir a mãe, ao se apropriar simbioticamente dos recursos oferecidos. Já o estudo da psicanálise sobre o ato canibal em si mostra que no passado o ato sempre foi ligado a rituais ou crenças de que o que se alimenta do outro toma suas qualidades e atributos positivos para si. Ao comer o outro, se torna melhor, mais forte, mais satisfeito consigo mesmo.

Como o Tinder, e por fim o filme, se relacionam com o assunto, é simples. O Tinder é um ótimo exemplo da sociedade das imagens predita por teóricos como Guy Debord, Jean Baudrillard e até mesmo Andy Warhol: na hipermodernidade em que vivemos, você é aquilo que apresenta aos outros como imagem, que será consumida por outros. No Tinder, e na vida, a imagem que você constrói de si e que apresentam a você é o que fetichiza seus desejos, move sua libido, te diz se você acha mais interessante ou não o perfil do cara bem apessoado de roupas de marca na foto da viagem à Londres (e se ele te curte de volta). Você já deve ter ouvido de alguém que o aplicativo é como uma loja de pessoas que você escolhe produtos na prateleira - e não se engane, o conceito aqui é o mesmo. Esse fenômeno ocorrente no aplicativo é uma forma de objetificação do ser humano, e por fim, de consumo. Consumo aqui é compra, é uso, e é aglutinação: Comer o outro. Afinal, porque você acha que existem tantas expressões sexuais ligadas ao ato de se alimentar, como alguém ser “gostoso(a)”, ou “comer” aquela pessoa?

Por isso é tão interessante pra mensagem do filme que não fique claro o que a alienigena vivida por Scarlett Johansson (que na verdade por um bom tempo do filme não fica claro que é de fato uma alienígena) faz com suas vítimas. Durante o filme, ela apenas observa os seres humanos e seu comportamento, e percebe como ela mesma vai assimilando características humanas, como compaixão. Ao mesmo tempo, há uma sacada genial aí: as pessoas que ela observa geralmente são de comportamentos mais animalescos, mais “desumanos”. Ou seja, ela estaria sendo mais humanizada que os próprios seres que consome. E consome seja observando, convivendo ou os fazendo mergulhar numa piscina negra.

Não muito diferente, nos apropriamos das pessoas que conhecemos e admiramos, seja por admiração, empatia, choque, inveja; seguimos, curtimos, e nisso sentimos que pertencemos a algo – e que algo nos pertence também a partir daí. Quando vemos um filme porque Scarlett Johansson aparece nua, estamos consumindo um produto midiático que satisfaça nossa libido e adicione aquilo à nós, como se nos apropriássemos de sua beleza. Ou seja, Sob a Pele é exatamente sobre isso. Mas o sujeito principal não é a atriz. Sou eu e você. E a crítica feita por ele é sobre todos nós.


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